segunda-feira, julho 24, 2006

O espelho

Ninguém falava seu nome certo e ele urrava de dor e prazer quando isso acontecia, num sentimento de superioridade velada, já que ele não era um Silva. Mas ninguém sabia, pois todos os gritos eram internos de forma que na superfície havia uma camada de gelo espessa, num solo que nunca sofria tremores.
Era uma constante simpatia de dar raiva de não sofrer. Nos olhos apenas um pêndulo entre dois extremos. Era um macho aristocrata.
Dava desconfiança de ver. Talvez tudo fosse fachada, uma bela casa em estilo germânico com paninhos embaixo dos vasos geometricamente arrumados, numa equação cujo resultado era um movimento uniforme.
Tudo isso é porque perfeição causa estranheza já que no mundo não há forma que não seja maculada. Depois de paridas, todas as coisas passam por uma espécie de batismo que as arranha, mancha ou tira pedaço.
Ele disse que era pra eu me sentir à vontade e realmente a casa era aconchegante. Os objetos variados haviam sido estacionados de forma harmônica, numa habilidade típica de quem planeja tudo.
Precisei me aliviar fui ao banheiro, mas errei e cheguei no quarto. Ele tinha um espelho no quarto. Ele tinha um espelho e não era qualquer espelho. Era enorme e estava estrategicamente posicionado defronte o leito de sacanagens.
Fiquei feliz porque ele tinha um espelho. Ele agora era meu amigo, de verdade. Ele também pensava naquilo e poderia até ser confidente. Ele gostava de amar e se ver no espelho. Amava e olhava o espelho, isso eu tinha certeza!
Não tive mais receios e sorri.

sexta-feira, julho 21, 2006

Perdida

Ela perdeu um sonho que era sonho porque a realidade não permitiu que a ternura virasse acaso. Caso se perdesse no mundo, era só piscar e a bóia da salvação viria como uma luva. Mas a luva não serviu e prendeu-lhe a circulação. Perdeu. Perdeu, pensou a garota que não sabia direito se a vida era para ser tolerada em nota constante ou degustada sem distinção de sabores.
Amargo era seu peito que implodia num grito suave que só os mais atentos conseguiriam ouvir. Viu um sorriso, lembrou-se de como era quando feliz buscava nada. Agora que procurava um sentido coeso para a vida caótica ela não estava em pedaços, mas não sorria mais, só quando contavam piada.
A piada era que tudo começou num riso e acabou em choro, leve como pluma que voa aos ventos incertos e terminou certo como uma bigorna.
Não sabia se perdera ou ganhara, perdeu o parâmetro e se convenceu que já não tinha certeza.
No coração uma corda apertava num nó de marinheiro que quando se gostava já estava no próximo porto. Não sabia se virava massa de modelar no molde ou geléia em mãos de criança.
A impressão que tinha era que o sol continuava nascendo, mas cada vez mais apagado e os dias eram cada vez mais qualquer coisa. O rolo compressor da máquina produtiva tratou de deixá-la em transe por alguns momentos. Passava o dia a pensar em frutos mas a música de Bach lembrava que havia ainda água em seu peito.
Sofria para não deixar passar em branco.

segunda-feira, julho 17, 2006

Beleza

Ela era inesquecível como o episódio do Chaves em Acapulco. Ela dançava como quem zomba da vida com seus olhos cristalinos pedindo mais. Ia aos extremos sempre perdendo o equilíbrio.
A beleza latente disfarçava a armadilha que aqueles olhos guardavam para quem ousasse tocá-los com mais firmeza. Ela pirava.
Sabia fazer um elogio e isso era uma rede que pescava mais peixes que o necessário.
Dizia que estava infeliz, mas era só ímã. O ouvido que ousasse escutar as lamúrias de voz potente nunca mais seria o mesmo.
Luisa estava no mundo para cavar a terra úmida que guardava milhares de segredos. Não tinha medo de se jogar num poço fundo de água fria se soubesse que era doce. O problema era voltar à superfície.
Depois de tanto amor desabou num choro infantil, era realmente uma menina, só podia ser. Amargura era palavra desconhecida e ela queria um cigarro, mas não sabia tragar. Era um choro show de quem não podia perder o palco. Perdeu a graça. Deixei-a chorando quando o sol nascia, feliz.

sexta-feira, julho 07, 2006

Patricia

Sinto saudades, uma saudade suave como um carinho no rosto. Ela era tão diferente de mim e, no entanto, a gente se dava tão bem. Ela queria casar e fazia filó. Eu queria provar de tudo antes de me amarrar e não pensava muito nisso. Ela balançava a cabeça na horizontal ao ouvir cada nova história minha. Eu não entendia como aquela vida pacata entre tecidos, agulhas e o mesmo namorado de quatro anos poderia ser bacana.
Quando a conheci pensei que era rica, tão chique sabia combinar muito bem as roupas. Mas não era. Morava com os pais num apartamento pequeno e tinha internet discada. Ajudava nas contas. Não tinha armário, suas roupas ficavam expostas em araras coloridas.
A lógica da empatia é não ter lógica. Se ela me ligasse agora me pedindo para dar a volta ao mundo de um pé só, eu o faria, se isso fosse fazê-la sorrir verdadeiramente. Acredito que ela faria o mesmo por mim. Talvez não. Não importa.

segunda-feira, julho 03, 2006

Mais

Ela pegou uma carona na boléia de uma nave do tempo e estava tentando viver agora. Agora passava muito rápido, pensou ela. Agora agora agora agora agora, viu já passou. Agora era muito pouco tempo pra se fazer qualquer coisa. Ela precisava se agarrar a algo para não se perder no turbilhão de flores, frutos e animais que a rodeava. O mar era lindo, e as ondas duravam mais do que agora. A espuma branca brindava a vitória da onda sobre o tempo, elas sempre estariam ali.
A menos de um segundo para se tornar real, ela pensou que queria continuar dormindo, por pura falta de coragem. Era mais confortável viver no limbo dos sonhos e prazeres rápidos do que suportar as estranhas forças que movem a vida. Raiva e amor pulsavam no peito, tudo era tão intenso que seu corpo parecia um invólucro hermético prestes a explodir.
Desejava sentir todos os gostos que estavam tão fortes que dava uma aflição de ter pouca língua pra muito sabor.
Seu sentimento era maior que o mundo, um sentimento estranho que não havia fluído por nenhum canal conhecido. Parecia que raiva, amor, paixão, tédio, vida e morte tudo estava misturado fazendo com que ela não soubesse como sentir.
Esperou que passasse, e acabou passando, mas deixou em seu coração a memória de que em seu íntimo havia um poder terrível e amável de sede de engolir tudo.