sábado, maio 27, 2006

Chapéu-coco

Ela estava triste como já havia estado, mas não lembrava que a dor era tão ruim. A auto-estima estava microscópica. Ela já desconfiava, mas ver era diferente. Todos alertavam “ele é um cafajeste, sai dessa”. E justamente por isso ela estava tão apaixonada. Um boçal de pijamas e touca nunca a faria se sentir assim.
Tinha que ser loura, a vagabunda. E de cabelo comprido. Não queria saber se tinha olhos azuis para não aumentar seu ódio. Ela havia chorado a noite toda, acordou melhorzinha. Resolveu reagir e tocar a vida.
Saiu para correr porque queria ficar magra. Comeu uma refeição leve. À tardinha foi ao salão de beleza, pois para uma mulher não há nada melhor do que uma mudança no visual para alegrar os ânimos. Basta uma tinta ou um corte legal para nos sentirmos armadas até os dentes para enfrentar a vida. Pelo menos por uns dias.
Sentou na cadeira e pediu um repicado igual ao da atriz. Explicou direitinho pro profissional o que ela queria, mostrou a foto na Caras e fechou os olhos, pronta para sair dali outra mulher.
Quando olhou no espelho, que horror. Um volume horroroso no alto da cabeça e fiapos elétricos pendiam sobre o queixo, ela estava horrível. Irritou-se com a bicha e mandou ela ajeitar aquilo – “Fiz exatamente o que você pediu”, disse o rapaz. Com lágrimas crescendo nos olhos e um aperto na garganta ela pediu, num fio de voz trêmula. “Faça o que for preciso, mas conserte isso. Tá uma bosta, eu to horrível. Eu preciso ficar linda”.
Ele foi tesourando mas nada de ficar bom...ela estava profundamente irritada e já fazia especulações sobre o ódio ou inveja que a bicha devia ter das mulheres. A irritação crescia, isso era a pior coisa que podia lhe acontecer agora, a pior! E quanto mais ele cortava a situação piorava...
A bicha tentava melhorar a situação dizendo que tuuuuudo era fashion. Acabou com um curtinho à Elis Regina, que só ficava bem na Elis Regina.
Saiu arrasada, pagou a conta e não deu gorjeta. Virou a esquina e recebeu uma cantada de uma mulher.

domingo, maio 21, 2006

Dança da vassoura

Ás vezes batia a sensação de algo agudo e lento no peito, sem nenhuma explicação. Podia ser tudo e nada ao mesmo tempo. Uma desilusão, um amor para acontecer, a solidão física amenizada por livros e filmes. Ele estava sozinho.
Quantas pessoas sozinhas havia no mundo? Ele pensava para se sentir melhor...Quem sabe se ele fundasse o encontro mundial dos sozinhos? Mas os sozinhos eram sozinhos por alguma razão, não ia ser o fato de estarem juntos que os tornaria, os tornaria....qual seria o contrário de sozinho? Enturmado? Junto? Nenhuma dessas palavras soava tão forte quanto sozinho.
A nota aguda continuava a ressonar, não importa o que fizesse. De vez em quando ele se distraía e ela ficava mais branda, como se o maestro regesse um momento piano.
Essa era a questão, quem seria o maestro? Quem estava no comando? Não era ele, com certeza. Se fosse ele já não haveria mais agudo ou grave, apenas um grito estridente de alegria que perfuraria as casas, quebraria vidraças e anunciaria ao mundo que já não era mais sozinho.
Mas por que pensar no mundo? Porque era necessário que soubessem que ele não era sozinho, não bastava ele saber, sozinho?

Brilhante

Era um café, desses cafés cools de Ipanema onde a classe média folheia livros que nem sempre compra enquanto saboreia deliciosos capuccinos e biscoitinhos amanteigados. Chega a mulher de vestido vermelho, que vai mudar para sempre a vida do garoto de boné.
Ela pegou um livro na prateleira de sociologia e sentou-se muito sensual com seu salto anabella e suas argolas douradas.
Era um texto difícil, ela havia marcado discretamente a página em que havia parado. Sempre escondia o tal livro na seção infantil e torcia para que os vendedores não fossem meticulosos ao arrumar a loja.
Tinha uma beleza mediana e um carisma que fazia a Gisele Bündchen ter o charme de uma canja sem sal. Seus movimentos eram naturalmente friamente calculados.
Rodrigo estava no segundo período de Comunicação e passara na livraria-café para comprar um livro de sociologia. Não ligou muito para a moça de início. Ele era muito rico, herdeiro de uma empresa de construção naval.
Tereza tocava o café com o charme de uma gueixa, e isso o encantou o adolescente, tão acostumado ao jeito tumultuado das garotas de sua geração.
Não cabe descrever como Rodrigo, neste mesmo dia, matou aula e passou a tarde a conversar com a moça. O que aconteceu foi aquele velho e conhecido jogo de sedução covarde entre uma mulher e um garoto.
Ficaram. Namoraram. Almoçavam com a família (a dele, claro) aos domingos. De início, Tereza causou desconfiança nos pais de Rodrigo, pois era latente que ela não havia nascido em berço de ouro. Por mais que tentasse esconder, havia pequenos detalhes em sua roupa e no seu jeito que denunciavam que a finesse havia sido conquistada (e só ela sabia o quanto isso lhe custava). Logo a desconfiança se apagou. A moça era muito culta e desenvolta, falava sobre qualquer assunto, conhecia Europa e Índia, seguia todas as regras de etiqueta. Isso tranqüilizou a família de Rodrigo.
Era sábado, começo de noite. Tereza esperava por Rodrigo no lugar de sempre. Ele dirigia seu carro com vidros fumé quando foi interceptado por dois moleques. Um deles estava armado. Levaram o carro e fizeram o menino sacar uma quantia muito alta. Os seqüestradores pretendiam negociar, como comerciantes que jogam pro alto para vender num preço razoável, mas o garoto, assustado como nunca estivera, pagou tudo sem questionar.
Tereza cansou de esperar e foi para casa. Rodrigo voltou andando em estado de choque para seu apartamento. Ligou para a namorada, que respondeu chateada e nem quis saber da história. Disse que não era mulher de levar bolo e nunca mais atendeu às ligações do rapaz.
O garoto enlouqueceu com o duplo golpe. Fora humilhado pelos assaltantes e perdera a namorada no mesmo dia. Nunca havia lidado com emoções tão fortes. Na manhã seguinte, decidido, foi à joalheria comprar um anel de brilhantes. Aprendera, num filme antigo que havia assistido na faculdade, que os diamantes são os melhores amigos das mulheres.
Mandou entregar no endereço de Tereza, um prédio na quadra da praia. Dalila, uma senhorinha simpática que morava sozinha, não entendeu nada quando o entregador chegou com as flores e a singela caixinha, mas ficou feliz pelo anel ter entrado direitinho no seu dedo.

domingo, maio 14, 2006

Medalha de prata

O celular fez um barulho avisando que havia mensagem de texto, “porque há coisas mais fáceis de se escrever do que se dizer”, pensou a garota. Tinha acabado de acabar de sair da adolescência e estava aprendendo que havia mais espinhos no mundo do que rosas em seu jardim. A mensagem não era dele, o que a fez ter raiva daquele toque de mensagens que costumava soar tão belo aos seus ouvidos, porque sempre trazia palavras doces, às vezes até picantes. Essa era do outro, o que ela não ligava. O outro ligava até demais e ela não gostava das coisas fáceis, mas também não gostava de passar fome.
Desejou que o outro sofresse como ela sofria agora, porque se todos estivessem sofrendo, ela se sentiria parte do mundo. Logo ela que se preocupava demais em não fazer os outros sofrerem, mesmo que isso lhe custasse uma suave auto-mutilação, o que acontecia quase diariamente. A mensagem dizia “esquece essa febre e vamos sair”, e não era a primeira vez que ele a importunava no dia. Não aceitou o não, sem saber que mesmo sem febre ela estaria com febre.
Estava chorando muito, seus olhos antes amendoados tinham tomado uma forma esquisitíssima, quase oriental. Por que ele - não o outro - conseguia dar lhe facadas no peito como se falasse de flores? Tudo tão claro em palavras tão reconfortantes. “Pode contar comigo, respeito qualquer decisão que você tomar”. Aquele dia ela estava certa que o ia colocar no bolso dos esquecimentos, mas sabia que daqui uns dias ia ser como achar dinheiro em roupas não lavadas.
Pensou em pegar o carro, sair por aí, comprar um cigarro, tomar uma cerveja, sair correndo, fazer qualquer coisa que lhe desse mínimo prazer, nem que fosse o prazer do proibido, que era exatamente o que acabara de perder a razão em relação a ele - não o outro. Descobriu que os sentimentos geralmente vêm em opostos similares. Aquela dor era o amor que não conseguiu virar som e explodiu em água. Não conseguiu virar som, nos dois lados um estéreo mudo.
Ele - não o outro - disse que ela podia contar com ele num tom de voz que selava a verdade. Para ele, a clandestinidade dos dois estava perfeita e cômoda, e não ia mover uma palha leve para continuar com ela caso ela resolvesse obrigá-lo a escolher. A escolha já estava feita e era isso que doía. Era a sensação dos vices.
Para que serve um vice? - se perguntava. Sabia que quando o presidente viajava o vice que assumia, e para ela isso fazia todo sentido. Sabia que o Vasco era famoso por ter sido muitas vezes vice, mas não se importava, pois não era vascaína e agora muito menos iria o ser.
“Cruz de Malta é o caralho, essa eu não carrego nem fodendo” pensou já sem nenhuma censura, tomando um gosto pela raiva e pelo prazer de poder ferir o mundo, para que assim ela fizesse parte dele.
Adormeceu ali naquela poça de lágrimas e acordou com o nariz entupido.