sexta-feira, outubro 27, 2006

Vida

Cada momento um sentimento ocorre mais ou menos intenso. Ainda agora eu estava a sorrir e sentir a música. Dançava e cantava.
Num súbito o mundo escureceu e o sol mergulhou nas profundezas. Caí. Estou aqui agora num sentimento médio tentando lidar com as coisas.
A razão é salvadora do sofrimento. Só ela está lá precisa e matemática. Ela é constante, movimento uniforme que não pulsa. Apesar de tão sem graça ela faz coisas incríveis. Preciso recorrer mais à ela.
Sou um rio que corre direto sem pedir licença. Atropelo as pedras que insistem em mudar o rumo. As vezes empoço e odeio quando isso acontece.
Desembesto sem arreio e nem sempre é bom. Mas quando é, ninguém segura.
Sábio é o vira-lata, que desconfia até quando lhe oferecem comida. Sábia é a criança, eternamente buscando o doce.

Um comentário:

Anônimo disse...

Me lembrou muito Manoel de Barros, a saber:
"Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter de envesgar o seu idioma ao ponto de alcançar o murmúrio das águas nas folhas das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as coisas. Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais idéias: terá chuvas, tardes, ventos, passarinhos...
Nos restos de comida onde as moscas governam ele achará a solidão.
Será arrancado de dentro dele pelas palavras a torquês.
Sairá entorpecido de haver-se.
Saíra entorpecido e escuro.
Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na barrga do cavalo. Vai o menino e fura de canivete a sambixuga: Escorre sangue escuro do cavalo.
Palavra de um artista tem que escorrer substantivo escuro dele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de enxergar no olho de uma garça os perfumes do sol."

E ainda:

"Uso um deformante para a voz.
Em mim funciona um forte encanto a tontos.
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de uma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.
Não sei de tudo quase sempre quanto nunca.
Experimento o gozo de criar.
Experimento o gozo de Deus.
Faço vaginação com palavras até meu retrato aparecer.
Apareço de costas.
Preciso de atingir a escuridão com clareza.
Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar o meu aspro.
Palavras têm que adoecer de mim para que se tornem mais saudáveis.
Vou sendo incorporado pelas formas pelos cheiros pelo som pelas cores.
Deambulo aos esgarços.
Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora pra mim uma importância de Catedral."